A responsabilidade do Poder Público pela falha de governança do interesse público nas mãos de Organização Social

Sarah F. Martins – Sócia do escritório Couto de Barros & Martins

 

Sumário: Introdução. 1. Colocação do problema. 2. Organizações Sociais. 2.1. Falhas de governança de entidades não estatais na execução do contrato de gestão. 2.2. Responsabilidade do Poder Público. Conclusão.

 

Introdução

 

As organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, que não são criadas por lei, nem integram a Administração Pública indireta, sendo que tal título é concedido pelo Poder Público, mediante o atendimento de requisitos previstos no artigo 2º da Lei nº 9.637/1998, para que, em parceria com a Administração Pública, preste serviços de interesse público, como saúde, educação, cultura, entre outros.

De maneira geral, a parceria entre o Poder Público e a entidade sem fins lucrativos, ou organização social, não se dá na forma de delegação de serviços públicos e sim como fomento e execução de atividades essenciais do Estado, relação esta que se materializa por meio de um contrato de gestão, nos termos do artigo 5º da legislação ora citada, com observância aos princípios constitucionais aplicados à Administração Pública do artigo 37, caput, da Constituição Federal, como o da legalidade, da publicidade, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência.

O contrato de gestão é elaborado de forma consensual entre a Administração Pública e a Organização Social, com a discriminação das atribuições, responsabilidades e obrigações de todas as partes, programa de trabalho, metas a serem atingidas e os respectivos prazos para tanto e, uma vez aprovado pelo Conselho de Administração da Organização Social, deve ser submetido à autoridade supervisora da atividade fomentada para iniciar a execução do contrato.

Nesse contexto, a legislação específica determina que a entidade privada contratada deve ser fiscalizada internamente, pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada. Por isso, a Organização Social deve apresentar relatório para demonstrar que as metas delineadas no contrato estão sendo cumpridas, assim como prestar as contas para comprovar a aplicação dos recursos públicos que lhe são repassados.

Ainda sobre a fiscalização da Organização Social, o artigo 70, parágrafo único, da Constituição Federal, estabelece que qualquer entidade que utilize, arrecade, gerencie ou administre recursos públicos deve prestar constas a fim de dar transparência e publicidade da destinação desses recursos. Dessa forma, a fiscalização do Poder Público sobre o contrato de gestão deve objetivar a análise do cumprimento das metas, assim como os resultados produzidos e o apoio ao controle externo, como aquele exercido pelo Tribunal de Contas, na função finalística das entidades sem fins lucrativos.

Diante disso, tendo como base o tema da fiscalização interna do contrato pelo Estado, o presente artigo irá tratar sobre a falha de governança do interesse público nas mãos da Organização Social, por meio da análise de um caso prático, e a eventual responsabilidade do Poder Público pela culpa in vigilando, sendo que a análise irá considerar o vínculo em que a Administração Pública e a Organização Social se opera. Vejamos.

 

Colocação do problema

 

O problema surge quando há uma omissão da Administração Pública, no que tange à fiscalização adequada da destinação dada aos recursos públicos nas Organizações Sociais, o que pode ensejar uma governança ineficaz do interesse público nas mãos de ente não estatal, gerando imensos passivos, inclusive concernentes às verbas trabalhistas dos empregados da Organização, razão pela qual o Estado pode ser chamado para responder pelas verbas, com fundamento na culpa in vigilando, sendo que o vínculo entre a Administração Pública e a Organização Social se opera em regime de mútua colaboração para a promoção de atividade de utilidade pública e não de regime de delegação ou terceirização de serviços como no contrato administrativo.

 

Organizações sociais

 

Primeiramente, vale destacar que as organizações sociais não são entidades criadas por lei, tampouco fazem parte da estrutura da Administração Pública, sendo que compõem o quadro de pessoas jurídicas de direito privado, organizadas sob a forma de fundações ou associações sociais sem fins lucrativos.

Além disso, para que sejam chamadas de organizações sociais, estas entidades recebem o título do Poder Público, conferido mediante a presença de certos requisitos legais, ou seja, nenhuma pessoa jurídica é constituída sob a forma de organização e sim adquire tal título. Por isso, o importante é notar a forma de parceria firmada entre as organizações sociais e o Estado e não a estrutura ou a constituição da entidade privada.

Nesse sentido, as pessoas jurídicas sem fins lucrativos são denominadas como organizações sociais para exercer atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, sendo que as organizações sociais visam fomentar tais atividades e não se trata de delegação de serviços públicos, já que a delegação é a transferência de execução de serviços públicos.

A ideia de fomento das atividades, por meio das organizações sociais, é a de que o particular participe da gestão dessas atividades sem que, para tanto, haja transferência da execução dos mesmos, assim como visa afastar a burocratização encontrada na lei de licitação e nos contratos administrativos.

Para regulamentar a qualificação das organizações sociais, a Lei nº 9.637/1998, que sucedeu a Medida Provisória nº 1.591/1997, dispôs que o Poder Público poderia intitular como organização social as entidades que preenchessem os requisitos elencados no artigo 2º, dentre os quais se destacam a natureza social de seus objetivos, a entidade ter como órgão de deliberação superior e de direção um Conselho de Administração, a obrigatoriedade de a entidade pública emitir relatórios financeiros anuais.

Além dos requisitos legais, para que a entidade privada adquira o título de organização social, há necessidade de aprovação, mediante os critérios de conveniência e oportunidade, do Ministro de Estado ou titular de órgão superior ou regulador da área de atuação da mesma.

Toda essa análise sucinta sobre a organização social foi necessária para que se possa entender que esta é uma entidade privada, que recebe esse título, desde que preenchidos certos requisitos, para fomentar atividades específicas, que não são de exclusividade do Estado, por meio de um instrumento, que é o contrato de gestão, responsável por definir as atribuições, deveres e obrigações da mútua colaboração entre o Poder Público e a entidade privada.

E, ainda, o contrato de gestão prevê as metas a serem atingidas, o plano de trabalho, os prazos de execução e os critérios objetivos para avaliação das atividades desempenhadas pela organização social, sendo que, para tanto, discutia-se muito sobre a possibilidade de contratação dessa entidade privada ser por dispensa de licitação, o que restou pacificado com o julgamento da ADI 1923-DF1, que definiu que a organização social poderia firmar contrato de gestão com a Administração sem que, para tanto, fosse necessário o cumprimento dos procedimentos burocráticos da lei de licitações, desde que observados os princípios do caput do artigo 37 da Constituição Federal.

Enfim, vale destacar que a organização social, em que pese ser pessoa jurídica de direito privado, utiliza recursos públicos para fomentar as atividades que lhe são atribuídas pelo contrato de gestão. Por essa razão, deve existir um controle ou uma fiscalização sobre o uso desses recursos, tanto pela Administração Pública quanto pelos órgãos de controle em sua função finalística, qual seja, aplicação das verbas públicas.

No entanto, no caso de omissão na fiscalização interna da execução do contrato, a autoridade pública poderá responder solidariamente pelo ressarcimento ao erário, juntamente com os dirigentes da organização social, nos termos do artigo 9º da Lei nº 9.637/1994.

Ou seja, a própria legislação já dispõe sobre os casos em que a autoridade responsável pela fiscalização tenha tido conhecimento de irregularidade ou ilegalidade no uso de recursos públicos. Porém, não há qualquer previsão sobre quem seria o responsável pelas falhas de governança das entidades não estatais, cometidas na execução do contrato de gestão, que gerem prejuízos a terceiros, tenho em vista a natureza do vínculo que se forma entre o Poder Público e a organização social.

 

Falhas de governança de entidades não estatais na execução do contrato de gestão

 

Não obstante a difícil tarefa de definir a governança pública, diante da complexidade do assunto, o Decreto 9.203 de 22 de novembro de 2017 inovou e dispôs, em seu artigo 2º, inciso I2, sobre a governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, que surgiu diante das recomendações da CDE e a necessidade de se estabelecer diálogo com as reflexões dos Tribunais de Contas a respeito do tema, direta ou indiretamente, sendo os princípios dessa governança a capacidade de resposta, a integralidade, a confiabilidade, a melhoria regulatória, a prestação de contas e responsabilidade e a transparência.

Ocorre que, a governança pública nunca foi prioridade da legislação brasileira, e sim a preocupação pelo controle e pela fiscalização, principalmente dos gestores públicos, como assevera Carlos Ari Sundfeld3:

 

“É verdade que, em abstrato, ninguém no mundo jurídico contesta que a ação administrativa tenha de ser eficiente e eficaz. Até a Constituição cobra “eficiência” da administração pública (art. 37). Mas vamos falar a verdade: a boa gestão pública não é a prioridade da legislação brasileira, muito menos  de seus intérpretes. A prioridade tem sido outra: limitar e controlar ao máximo – até ameaçar – os gestores, em princípio suspeitos de alguma coisa. Outro problema é que se espalhou no Brasil uma verdadeira obsessão em punir gestores públicos: falhou, pagou; um exagero. Claro que a corrupção e o desvio de recursos públicos têm de ser combatidos com severidade. Mas grande parte dos processos punitivos contra gestores públicos é por falhas operacionais, por questões formais ou por divergências de opinião. Ora, falhas são próprias de qualquer organização; só não erra quem não age. Os controladores por acaso são punidos quando falham? De outro lado, é normal as opções do gestor não coincidirem com as preferências do controlador: o direito tem muitas incertezas, não é matemática; divergência de interpretação sobre fatos e leis não é crime. Portanto, punição é um erro para esses casos”.

 

Como se vê, as falhas de governança são, muitas vezes, inevitáveis, mas devem ser evidenciadas, como aquelas cometidas por entidades não estatais na execução de um contrato de gestão, cujos erros mais comuns se resumem na ineficácia entre os recursos empregados e os resultados alcançados, descumprimento das funções fundamentais da Organização Social, falta de recursos financeiros, incompatibilidade entre função e estrutura, entre outros. A grande questão é saber se essas falhas de governança poderiam ser corrigidas pelo simples controle e fiscalização da Administração Pública.

Para facilitar a visualização do problema, importante trazer o exemplo de uma governança do interesse público falha nas mãos de Organização Social, qual seja, o caso da gestão das atividades e serviços de saúde, ensino, pesquisa e avaliação do Complexo Hospitalar Prefeito Edivaldo Orsi, ou Hospital Ouro Verde, situado na cidade de Campinas, Estado de São Paulo.

Foi realizado um chamamento público pela Prefeitura Municipal de Campinas, cujo objeto era a gestão das atividades e serviços de saúde, ensino e pesquisa do Hospital Ouro Verde, tendo sido classificada em primeiro lugar a Organização Social Vitale Saúde.

Em seguida, o contrato de gestão entre a Organização Social Vitale Saúde e a Prefeitura Municipal de Campinas foi assinado, em 29 de abril de 2016, com prazo de 60 (sessenta) meses, a contar da assinatura do mesmo.

No entanto, no decorrer da execução do contrato de gestão, foi identificada a falha de governança do interesse público saúde pela Organização Social Vitale Saúde, visto que faltavam recursos financeiros para a aquisição de insumos e materiais básicos para atendimento adequado de saúde à população, como anestésicos, esparadrapos, roupa de cama, baldes para banhos em pacientes, assim como foram inobservados os direitos trabalhistas dos funcionários, que ficaram sem receber salários, férias ou rescisões contratuais, levando a greves e paralisações, demonstrando a ineficácia dos recursos empregados e os resultados alcançados.

O passo seguinte, então, foi discutir a responsabilidade tanto da Prefeitura quanto da Organização Social perante a sociedade e os funcionários pela má gestão do contrato ou pela falha de governança do interesse público da saúde, e, ainda, se a Administração Pública Municipal poderia ser responsabilizada pelo pagamento das verbas trabalhistas pendentes, bem como pela regularização da atividade da saúde à população em decorrência da omissão de fiscalização interna do contrato.

A Prefeitura Municipal de Campinas estuda a possibilidade de assumir o montante de dívidas da Organização Social, que, segundo estimativas, perfaz o montante de R$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões), referente ao atraso de pagamento de encargos trabalhistas e o pagamento atrasados de rescisões contratuais, ou seja, o Poder Público estaria se responsabilizando pelos referidos pagamentos, ou se sub-rogando a tais deveres, sendo que esta situação será a seguir tratada com detalhes.

 

Responsabilidade do Poder Público

 

As entidades não estatais, como as organizações sociais, podem fomentar atividades de interesse público, por meio de um contrato de gestão com a Administração Pública, e, nessa situação, cometer falhas de governança, como aquelas exemplificadas no tópico anterior.

Todavia, o objeto do presente artigo é entender se o Poder Público deve responder pelas falhas de governança da Organização Social na execução do contrato de gestão, como a de não alcançar os resultados almejados, falta de recursos públicos, entre outros exemplos.

A responsabilidade civil do Estado consiste na obrigação imposta ao Poder Público para o ressarcimento de danos causados a terceiros por atos lícitos ou ilícitos, omissivos ou comissivos por ele praticado.

Sobre o tema, o Judiciário proferiu decisões no sentido de responsabilizar, subsidiariamente, o Estado pela má gestão do interesse público por entidades não estatais, com fundamento na culpa in vigilando do primeiro4 e na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho5, inclusive por créditos trabalhistas não adimplidos pela Organização Social contratada, bem como pela omissão de fiscalização quanto ao cumprimento das obrigações contratuais.

Noutro giro, o Tribunal de Contas da União6, que exerce um controle finalístico nos contratos de gestão, firmado entre a Organização Social e a Administração Pública, entende que a Administração Pública não deve responder pela falha de governança de entidade não estatal na execução do contrato de gestão. O agente público, ao seu turno, responsável pela fiscalização, que sabia da irregularidade na utilização de recursos públicos e se omitiu do seu mister deve responder pelo ressarcimento ao erário, posicionamento que está em consonância ao quanto disposto no artigo 9º da Lei nº 9.637/1998, assim como a previsão contratual7, que condiciona o envio do repasse público à correta prestação de contas da Organização Social contratada, com a comprovação de quitação das respectivas verbas trabalhistas.

Entretanto, evidente que a simples verificação de que o Poder Público fiscalizou ou não a execução do contrato de gestão não é suficiente para afirmar se ele deve ou não responder por eventuais danos cometidos a terceiros ou pelas dívidas e verbas trabalhistas não adimplidas pela Organização Social aos seus empregados, haja vista que, para tanto, se faz necessária à análise da natureza do vínculo em que a Administração Pública e a entidade não estatal se opera no cumprimento dos instrumentos de fomento.

O vínculo entre a Administração Pública e a Organização Social, durante a execução do contrato de gestão, se difere de um regime de delegação ou terceirização de serviços, posto que entre eles existe um objetivo de se promover as atividades de utilidade pública. Porém, inexistem deveres e obrigações nos moldes de um contrato administrativo, a saber.

Precipuamente, importante notar que a relação que se estabelece entre o Estado e a Organização Social não implica em delegação de competência e poderes públicos, sendo que as atividades desempenhadas pela entidade não estatal não substituem a ação estatal, mas a complementam. Por isso, a organização social é qualificada pelo Poder Público para a execução de atividades de interesse social e de natureza continuada. Logo, é uma instituição privada, criada e regida sob a égide dos ritos do Código Civil, e, consequentemente, contrata os seus empregados pelo regime celetista.

Nesse caminho, Frederico Durão Brito8 destaca as principais características das Organizações Social:

 

“Pode-se destacar como suas principais características: descentralização, reversão do patrimônio público, finalidade não lucrativa, autonomia administrativa, fomento pelo Estado, controle social, empregados contratados pelo regime da CLT e parceria com o Estado através do contrato de gestão”.

 

Ocorre que, mesmo diante de tais características, a doutrina divergia quanto à natureza jurídica do contrato de gestão, já que parte dela entendia que este teria a mesma natureza do contrato administrativo, tendo em vista a manutenção de certas prerrogativas da Administração Pública no contrato, sendo que a Organização Social, em que pese ser pessoa jurídica de direito privado, desempenha o fomento de atividade de interesso público.

Doutra banda, parte da doutrina considerava que o contrato de gestão como convênio com objeto comum entre as partes, ou como um acordo-programa, que tem como objetivo o estabelecimento de determinadas metas a serem alcançadas pela entidade não estatal e algum benefício do Poder Público.

De qualquer maneira, cumpre salientar que tal discussão restou pacificada com o julgamento da ADI 1923-DF do STF, em que se decidiu que o contrato de gestão tem natureza jurídica de convênio ou cooperação, dada a harmonia dos objetivos do Estado e da entidade não estatal. Logo, a atividade de fomento praticada pela Organização Social não se trata de terceirização de serviços, que é feita pela Administração Pública por meio do procedimento licitatório, sendo que nesses contratos os recursos públicos são apenas gerenciados em parceria com a entidade privada.

Portanto, no caso de prejuízos causados a terceiros ou dívidas trabalhistas não adimplidas pela Organização Social de seus empregados, em decorrência da falha de governança do contrato de gestão pela entidade não estatal, o Estado não teria responsabilidade, solidária ou subsidiária, posto que o simples repasse de verbas públicas não representa a configuração de um contrato administrativo e sim de um acordo de vontades entre o Poder Público e uma entidade não estatal para o fomento de atividades de utilidade pública, ou seja, eventual omissão de fiscalização interna do Estado na execução do contrato, atribuição esta legal e contratual, não configura a sua culpa in vigilando, para fins de atribuição de responsabilidade do Poder Público.

Por derradeiro, eventual condenação do Estado para adimplemento de dívidas trabalhistas dos empregados da Organização Social caracterizaria, de forma transversa, o contrato de gestão como um contrato administrativo comum, desvirtuando, assim, o instituto das entidades privadas, que, em parceria com a Administração Pública, fomentam atividades de interesse público, sem fins lucrativos9.

 

Conclusão

 

As entidades não estatais, sem fins lucrativos, qualificadas pelo Poder Público podem, por meio de um contrato de gestão, fomentar atividades de interesse público que não são de exclusividade do Estado, como educação, saúde, entre outras.

No entanto, na execução desse contrato firmado entre o Estado e a Organização Social podem ocorrer falhas de governança da entidade não estatal, como falta de recursos públicos, dívidas trabalhistas dos empregados dessa entidade privada, o que ensejaria a responsabilidade da Organização Social, do Estado, pela culpa in vigilando, ou de ambos?

Essa questão não é fácil de responder, haja vista que a análise não deve se limitar a entender se o Estado tinha ou não o dever de fiscalizar internamente o contrato e, se não o fez, seria responsabilizado, ou seja, a análise deve caminhar no sentido de identificar a natureza do vínculo firmado entre o Poder Público e a Organização Social para o cumprimento dos instrumentos de fomento administrativo.

Nessa medida, o dito vínculo entre as partes se difere de um regime de delegação ou terceirização de serviços, se aproximando de um acordo de vontades entre o Poder Público e uma entidade não estatal para o fomento de atividades de utilidade pública. Por essa razão, não há de se pensar que o Estado teria responsabilidade pelas falhas de governança cometidas pela entidade não estatal pelo fato de ter se omitido em eventual fiscalização interna do contrato, pois o Poder Público, nessa situação, teria um vínculo com a Organização Social de parceria e não de contratante, com deveres e obrigações típicas de um contrato administrativo.

Portanto, o objetivo desse artigo é demonstrar que o Estado não deve responder por eventuais falhas de governança cometidas pela Organização Social, na execução de um contrato de gestão, em razão primeira de que a natureza do vínculo estabelecido entre as partes é de parceria e não de um contrato administrativo, o que não exime eventual responsabilidade do agente responsável que sabia de eventual irregularidade ou ilegalidade cometidas na execução do contrato de gestão e, mesmo assim, se omitiu.

 

Citações

 

[1] A ADI 1923-DF foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores com o intuito de que fosse declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 9.637/1998, bem como o pedido de declaração de inconstitucionalidade da redação do artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93, estabelecida pela Lei 9.648/98, prevendo a dispensa de licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais. A Medida Cautelar foi indeferida, por maioria, do STF, sendo a decisão final julgado parcialmente procedente o pedido para que o procedimento de qualificação das OS fosse conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF e do o art. 20 da Lei nº 9.637/98; a celebração do contrato de gestão fosse conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, art. 12, §3º) fossem conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, fossem conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais fosse conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio; para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas.

[2] Art. 2º, inciso I: conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade.

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. Chega de axé no direito administrativo. Artigo publicado na Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP. Disponível em:
<http://www.sbdp.org.br/artigos_ver.php?idConteudo=100>. Acesso em: 20/11/2017.

[4] TST – RECURSO DE REVISTA RR 12087003920045090004; TRT2 RTOrd- Processo nº 1002165- 32.2016.5.02.0205.

[5] CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos
os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

[6] TCU – TC-000798/006/12; TC 009.825/2011-8; TC 017.909/2010-4; TC 018.739/2012-1; TC
018.739/2012-1.

[7] Art. 9o Os responsáveis pela fiscalização da execução do contrato de gestão, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por
organização social, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.

[8] BRITO. Frederico Durão. Reinventando as Instituições. In Revista do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, nº01, maio /98, p. 14-21.

[9] O Tribunal Superior do Trabalho, no Recurso de Revista RR 764002020055060121 76400- 20.2005.5.06.0121, se posicionou sobre o tema no sentido de que o Estado, quando atua no sentido de fomentar a educação ou a saúde – direitos constitucionais sociais consagrados no art. 6º da Carta Política – deve agir de modo afirmativo, de molde a tornar efetivos os direitos fundamentais, por todos os meios permitidos pelo direito, de forma centralizada ou descentralizada (…). Nesse diapasão, o mero repasse de verbas, por meio de convênio, para a Organização Social de Interesse Público, para a contratação de trabalhadores objetivando a promoção de projeto de saúde, não configura intervenção ou atuação econômica do Estado, mas implementação dos direitos fundamentais sociais, que se erigem em escopos precípuos da nação, daí porque não se há de falar na responsabilidade solidária ou subsidiária do Município. Do fato de o convênio ou o termo de parceria não se confundirem com contrato administrativo, não se há de falar em terceirização de serviços, tampouco em responsabilização subsidiária, nos moldes da Súmula nº 331 do TST, tendo em vista que houve a celebração de acordo de vontades entre o Município e a entidade privada, com escopo no fomento de atividades de utilidade pública. Ressalte-se que as responsabilidades do ente público, descritas nos arts. 18 da Lei nº 8.080/90 e 11 da Lei 9790/99, referem-se à sua competência para avaliar, fiscalizar e controlar a execução dos serviços de utilidade da comunidade prestados pela entidade privada, não se confundindo com a culpa in vigilando, motivo da responsabilização subsidiária, já que não esta adstrito ao exame do cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empresa conveniada, motivo pelo qual o Tribunal não conheceu do referido recurso.

 

Referências bibliográficas

 

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