O orçamento impositivo da EC nº 86/2015: Uma análise crítica.

Sarah F. Martins – Sócia do escritório Couto de Barros & Martins

 

 

Sumário: Introdução. 1. Orçamento impositivo. 2. Orçamento impositivo à brasileira. 2.1. Emenda Constitucional nº 86/2015. Conclusão.

 

Introdução

 

O propósito do presente artigo é trazer a ideia de que o orçamento é impositivo antes mesmo da Emenda Constitucional nº 86/2015. Porém, com o advento dessa emenda, o orçamento passou a ser impositivo da “maneira à brasileira”. Explico, ao invés de deixar claro que o orçamento é uma lei e, como tal, deve ser cumprida pelo Poder Executivo, acabou obrigando apenas o cumprimento das emendas parlamentares, que estão vinculadas aos interesses eleitorais desses parlamentares, assim como previu a vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde.

Assim, para entender a emenda constitucional será necessário passar pela ideia de orçamento impositivo, em contraposição ao orçamento meramente autorizativo, e todas as suas nuances para, então, compreender e questionar a maneira em que o orçamento impositivo foi previsto pela emenda constitucional e quais as suas consequências práticas, principalmente no que concerne aos desdobramentos entre os Poderes Executivo e Legislativo, bem como as consequências para os programas e ações de saúde.

Por fim, após essa breve análise será possível concluir a razão da previsão do orçamento impositivo ser considerada à brasileira e o prejuízo que causa a falta de uma estipulação mais genérica do tema.

 

Orçamento impositivo

 

O orçamento público sofreu alterações em seu conceito chegando, atualmente, ao orçamento-programa, que é um instrumento de planejamento de ações governamentais, o qual prevê programas de execução vinculada, razão pela qual a Administração Pública deve cumprir o planejamento e metas estipuladas nas leis orçamentárias, como ensina José Afonso da Silva1:

 

“Na verdade, o orçamento-programa não é apenas uma peça financeira, é, antes de tudo, um instrumento de execução de planos e projetos de realização de obras e serviços, visando ao desenvolvimento da comunidade”.

 

Além disso, José Afonso da Silva salienta que o orçamento-programa estipula metas a serem cumpridas, fixa as prioridades e especifica as ações a serem realizadas para, então, atingir o objetivo. Diante disso, o orçamento público, uma vez aprovado pelo Legislativo, limita as ações administrativas, sendo que as leis orçamentárias têm seu objeto definido pela Constituição Federal, no artigo 165 e seus parágrafos.

Em breves palavras, o ciclo orçamentário passa pela proposição do Executivo, com a consequente aprovação do Legislativo, tornando-se leis ordinárias, que devem ser executadas pela Administração Pública e fiscalizadas tanto pelos órgãos de controle, quanto pelo controle popular.

Após a proposição pelo Executivo e aprovação do Legislativo, o orçamento se torna lei, razão pela qual a Administração Pública não pode agir de forma contrária a ela, já que esta só está permitida a fazer ou deixar de algo em virtude de lei, isto é, deve observar o princípio da legalidade.

Nesse sentido, Luís Felipe Valerim Pinheiro2 dispõe sobre a observância das leis orçamentárias:

 

“A Constituição Federal de 1988 determina que as matérias abrangidas por seu art. 165, §§ 1.°, 2.°, 5.° e 8.°, constituem reserva de lei – diga-se lei orçamentária –, os programas e projetos devem ser previstos na LOA correspondente ao exercício financeiro vigente e aqueles que ultrapassem  este período devem ser contemplados no PPA (art. 167, I e § 1.°), as despesas são limitadas pelo valor dos créditos orçamentários aprovados pelo Parlamento (art. 167, II), a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos orçamentários dependem de autorização legislativa (art. 167, VI) e a concessão de vantagem, aumento de remuneração ou criação de cargos, empregos ou funções devem observar os condicionamentos previstos em seu art. 169, inclusive a existência de prévia dotação orçamentária ou autorização específica na LDO (art. 169, § 1.°).51 A iniciativa legislativa em matéria orçamentária ocorre por proposta do Poder Executivo52 (art. 84, XXIII, da CF de 1988) e sua aprovação é pelo Poder Legislativo (art. 166 da CF de 1988)”.

 

Diante dessa observância, a Administração fica limitada em suas ações e, consequentemente, a sua esfera discricionária é reduzida as previsões legais da matéria, sendo que, nas palavras de Luís Felipe Valerim Pinheiro, “as despesas, contempladas no  PPA e fixadas na LOA para um exercício financeiro, são impositivas à Administração Pública, de forma que a priori devem ser concretizadas na execução orçamentária3”.

No entanto, em que pese a vinculação da Administração as disposições legais a respeito da matéria orçamentária, a forma de realização das ações administração não são especificadas nas leis, já que o modo depende de variáveis, que são determinadas somente no momento da efetiva execução do orçamento.

 

Em suma, as leis orçamentárias, especialmente a PPA e a LOA, estabelecem as metas orçamentárias a serem atingidas, as prioridades a serem executadas por ações administrativas, que vinculam, pelo princípio da legalidade, a Administração Pública ao cumprimento das disposições legais, razão pela qual as leis ordinárias de matérias orçamentárias não são meramente autorizativas. Entretanto, na prática, os gestores públicos se utilizam desse argumento para afastar a natureza vinculativa do orçamento, assim como outros instrumentos jurídicos, como a medida provisória, usada de forma transversa para o Executivo deixar de cumprir, obrigatoriamente, as disposições orçamentárias. Sobre o tema, Ricardo Lobo Torres4, assevera que:

 

“Obviamente, a execução da despesa depende da arrecadação da receita, mas isso não significa nem autoriza o puro e simples descumprimento do orçamento, até mesmo de forma transversa, mediante o uso indevido de medidas provisórias. Uma simples consulta à lista de medidas provisórias editadas nos últimos anos serve para evidenciar a prodigalidade com a qual elas foram utilizadas para a abertura de créditos extraordinários, para atender despesas ordinárias, usuais, sem qualquer urgência, em completo desrespeito ao disposto no art. 41 da Lei 4.320/1964, cujo inc. III deixa claro que tais créditos somente podem ser abertos para despesas urgentes, “em casos de guerra, comoção ou calamidade pública”.

 

Portanto, restou evidenciada a natureza vinculativa do orçamento público, sendo que qualquer ato contrário ao cumprimento das disposições legais acerca do orçamento caracteriza crime de responsabilidade, segundo preconiza o artigo 58, IV, da Constituição Federal, excepcionalmente nos casos de motivos graves e situações excepcionais, desde que justificadamente expostos.

 

Orçamento impositivo à brasileira

 

  • Emenda constitucional nº 86/2015

 

O Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 85/2015, conhecida como emenda do orçamento impositivo, para alterar pontualmente os artigos 165 e 166 da Constituição Federal, que passou a estabelecer a vinculação de recursos para a execução de emendas parlamentares individuais, assim como previu uma vinculação do montante dos recursos da União a programas e ações de saúde.

No que tange a vinculação de receitas para as emendas parlamentares individuais, importante destacar os seguintes pontos.

Pela referida emenda constitucional, a execução do orçamento pela Administrativa estaria vinculada a um percentual de até 1,2% da receita corrente líquida da União para gastos com emendas parlamentares individuais, sendo que metade desse percentual deveria ser a ações e serviços públicos de saúde, mas vedado o seu uso para suprir despesas com pessoal ou encargos sociais.

A vinculação a esse percentual deve observar a execução equitativa da programação orçamentária, entendido como execução que atenda de forma equitativa e impessoal às emendas parlamentares individuais apresentadas, podendo ser utilizado os restos a pagar de até 0,6% da receita corrente líquida do exercício anterior. Porém, no caso de impedimento de ordem técnica, como a realização do empenho da despesa, tal vinculação restará cessada, o que deverá ser comunicado ao Legislativo, que terá o prazo de até 30 dias para indicar o remanejamento da programação e, em caso de omissão, tal remanejamento poderá ser implementado por ato do próprio Executivo.

Além disso, merece destaque a questão de que as emendas parlamentares destinadas aos Estados, Distrito Federal e Municípios independem de adimplência do ente federativo destinatário dos recursos, bem como a situação de que a vinculação de 1,2% poderá ser contingenciada, nos termos do artigo 9º da LRF.

Ultrapassada a análise das disposições da emenda constitucional nº 86/2015, referente às emendas parlamentares, insta ressaltar que o orçamento público, não obstante ser disciplinado por meio de leis ordinárias, carrega um conteúdo político partidário, motivo pelo qual, antes do advento desta emenda, as emendas parlamentares individuais aconteciam por meio da interação entre os Poderes Executivo e Legislativo a fim de atender interesses políticos locais e o clientelismo dos parlamentares, o que dificulta a implementação da vinculação da execução do orçamento.

Nessa direção, Kyoshi Harada5 afirma que:

 

“Por oportuno, cumpre lembrar que, lamentavelmente, entre nós, o orçamento, longe de espelhar um plano de ação governamental, referendado pela sociedade, tende mais para o campo da ficção. Tanto é assim que a União já ficou duas vezes sem orçamento aprovado, como resultado de divergências entre o Parlamento e o Executivo em torno de algumas das prioridades nacionais, sem que isso tivesse afetado a rotina governamental. (…) Vige entre nós a cultura de desprezo ao orçamento, apesar de, ironicamente, existir uma parafernália de regras e normas, algumas delas de natureza penal, objetivando a fiel execução orçamentária”.

 

Ou seja, a emenda constitucional nº 86 acabou positivando uma situação ocorrida na prática, razão pela qual, na visão de alguns autores6, o resultado dessa emenda mostrou-se positiva nas relações político-partidárias, na medida em que, com ela, deixa-se de ter moeda de troca entre o Congresso Nacional e o Planalto.

Ocorre que, para além disso, a emenda constitucional previu alteração em uma área muito sensível de políticas públicas do Estado, a vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde, gerando diversos debates, estes não tão positivos. Vejamos.

A emenda constitucional nº 86/2015 estabeleceu que a União deveria aplicar montante não inferior a 15% da corrente líquida do exercício em ações a programas de saúde, de forma gradual, ou seja, 13,2% em 2016; 13,7% em 2017; 14,1% em 2019 e 15% em 2020, sendo que esta previsão, de recursos destinados à saúde, era feita por lei complementar, que não tinha um percentual fixo, cujo objetivo era se resguardar de eventuais recuos e oscilação da economia.

Nessa direção, a Lei Complementar 141/12, revogada pela referida emenda, previa a matéria em seu artigo 5º, estabelecendo que a União aplicaria em programas e ações de saúde o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido, minimamente, do percentual correspondente a variação nominal do PIB, sendo que a disposição para os Estados e Município foi mantida na EC 86/2015, qual seja, os Estados devem vincular 12% da sua receita corrente líquida e os Municípios 15% à saúde.

No entanto, estima-se que essa alteração possa gerar perdas de até R$ 9 bilhões para a saúde, já que, mesmo nos parâmetros anteriores, o Brasil investia em saúde em termos inferiores ao parâmetro internacional, pois o Brasil aplicava menos de 4% do seu PIB em programas e ações de saúde, enquanto a média internacional apontava, no mínimo, 7%.

Assim, com a alteração do critério de cálculo para apuração de aplicação vinculada nos programas de saúde, iniciando-se por 13,2% e chegando aos 15% da receita corrente líquida, os demais recursos perderam a condição de financiamento adicional, sendo que o mecanismo instituído pela emenda constitucional não tem previsão de revisão quinquenal, como ocorria anteriormente.

Ainda na questão de recursos vinculados destinados à saúde, deve-se ressaltar que o SUS poderá suportar prejuízos com a alteração do método de cálculo pela emenda constitucional, visto que, com a crise e a recessão econômica, a receita pública, inevitavelmente, terá uma queda de receita dos entes públicos, o que, certamente, será refletido nas transferências entre os entes e o subfinanciamento do SUS, com grande possibilidade de atraso.

Por essa razão, o Conselho Nacional de Saúde7 coordenou o projeto de formação da Frente Nacional de Mobilização em Defesa do SUS “AbraSUS”, o qual, em regra, visa apoiar aprovação da PEC 01-A/2015 para aumentar o valor de aplicação mínima da União em programas à saúde em 19,2% da Receita Corrente Líquida.

De qualquer forma, o que se pretende trazer em voga é que a emenda constitucional nº 86/2015, conhecida como emenda do orçamento impositivo, trouxe um modelo de orçamento impositivo à brasileira, haja vista que a vinculação da Administração Pública para cumprir as disposições orçamentárias, aprovadas por leis, ficou adstrita às emendas parlamentares individuais e aos programas e ações da saúde, sendo que para todas as demais metas e prioridades orçamentárias a Administração Pública ainda considera o orçamento como meramente autorizativo.

 

Conclusão

 

Os programas e metas delineados no orçamento devem ser cumpridos pela Administração Pública na sua execução, pois, nessa situação, não existe margem de discricionariedade, já que o orçamento é lei e, como tal, deve ser observado e cumprido pelo Poder Público, com fundamento no princípio da legalidade, sob pena de responsabilidade do gestor público.

Nesse esteio, o orçamento público, após aprovado pelo Legislativo, tem natureza vinculativa e não meramente autorizativa. Porém, essa vinculação restou de forma expressa, por meio da emenda constitucional nº 86/2015, apenas para as emendas parlamentares individuais e ações de saúde.

Portanto, o orçamento impositivo da EC nº 86/2015 foi à brasileira, pois positivou apenas alguns dispositivos do orçamento, dando a impressão que nos demais a Administração Pública poderia executá-los ou não, quando, na verdade, todas as disposições orçamentárias deveriam ser, necessariamente, cumpridas pelo Poder Público.

 

Citações

 

[1] O orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Ed. RT, 1972. p. 40-41.

[2] CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury, coordenadores. Rumo ao orçamento impositivo: A delimitação da ação administrativa pelas leis orçamentárias. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 402.

[3] Ibid., p. 413.

[4] TORRES, Ricardo Lobo. O orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 52.

[5] HARADA, Kyoshi. Direito financeiro tributário. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 72.

[6] Para Fernando Facury Scaff, as tímidas normas aprovadas já tem o poder de causar muitas modificações nas relações político-partidárias existentes, pois a liberação de emendas parlamentares deixará de ser uma espécie de moeda de troca nas relações entre o Congresso e o Planalto, assim como de todos os governos do período democrático, em todos os níveis federativos, durante os quais se usou a liberação de emendas parlamentares para aprovar as matérias de interesse do Executivo junto ao Legislativo. Se o deputado votasse de acordo com o Planalto, as emendas seriam liberadas (mesmo que a conta-gotas); se votasse contra, não haveria liberação de recursos. Nos estados e municípios brasileiros esta mesma dinâmica existe e, tal como na União, é indiferente quais sejam os partidos na situação ou na oposição. A Emenda 86 se proporia a liberar o Legislativo do jugo do Executivo, o que é positivo.

[7] “A Conferência Nacional de Saúde deliberou sobre a conciliação de três eixos de ação que podem resolver no curto prazo os efeitos negativos do subfinanciamento do SUS para o atendimento de saúde da população: (i) Apoiar a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 01-A/2015 – que modifica a Emenda Constitucional nº 86/2015 por meio do aumento do valor da aplicação mínima da União em ASPS para 19,2% da Receita Corrente Líquida e rejeitar a prorrogação da DRU (Desvinculação das Receitas da União) para 2023 com alíquota majorada para 30% em tramitação no Congresso Nacional; (ii) Defender a criação de uma contribuição sobre as movimentações financeiras (nos moldes  da CPMF) e a taxação sobre grandes fortunas como novas fontes exclusivas para o SUS, cujos projetos estão tramitando no Congresso Nacional, de caráter progressivo (quem dispõe de maior capacidade contributiva deve pagar mais) e compartilhada entre a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios; Reforma tributária que promova a justiça fiscal, e; (iii) cobrar do governo federal a mudança da política econômica de caráter recessivo, com o início imediato de um processo de redução da taxa de juros, por outra política voltada para o crescimento econômico com inclusão social”.

 

Referências bibliográficas

 

CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando Facury, coordenadores. Rumo ao orçamento impositivo: A delimitação da ação administrativa pelas leis orçamentárias. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

                               . Orçamento impositivo. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

DE FARIA, Rodrigo Oliveira. Natureza jurídica do orçamento e flexibilidade orçamentária.

Tese de Mestrado em Direito – Faculdade de Direito USP. São Paulo.

FUNCIA, Francisco. A extensão da ameaça da EC 86/2015 sobre o SUS. Determinantes Sociais da Saúde. Disponível em: <http://dssbr.org/site/entrevistas/a-extensao-da-ameaca-da-ec- 862015-sobre-o-sus/>. Acesso em: 24 de novembro de 2017.

SCAFF, Fernando Facury. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela Emenda Constitucional 86. Consultor Jurídico. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-mar- 24/contas-vista-surge-orcamento-impositivo-brasileira-ec-86>. Acesso em: 24 de novembro de 2017.